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domingo, 17 de junho de 2012

A VELHICE



Ao transitar pelo corredor do apartamento, entrevejo quadros que guardam fotografias de nossos entes mais queridos. Estão ali ocupados em sorrir ou simplesmente com o olhar vago em direção à câmera que os eternizou no flagrante. Uma pergunta me salta à mente: quanto tempo esses retratos de nossos antepassados vão permanecer ali?  Passada a nossa geração e a geração seguinte, certamente alguém os olvidará, retirando-os da parede e colocando-os a um canto qualquer.

Nada é mais propenso ao esquecimento do que aquilo que passou. Assim como se faz aos objetos, algumas pessoas tendem a pensar em relação a outras. O velho François Chateaubriand já dizia que a idade provecta é uma temeridade para aqueles que a alcançam. “Outrora, a velhice era uma dignidade; hoje, ela é um peso”.

Enquanto se é jovem e o ardor da chama da vida tem sua maior gradação, todos os investimentos são fortuitamente destinados a essa idade.  Pode se ver  isso nas propaganda; a sua maioria está relacionada com o vigor da juventude. É que vem dela, o maior número de consumidores. E, por isso mesmo, a ela se destina tudo.

A nossa Cecília Meireles disse-o bem ao referir-se que não se morre de velhice, mas sim de indiferença. É a solidão arbitrada pela família que obriga o velho a se diferenciar do mundo.

O cansaço dos anos, leva-o a andar mais lento. E o mundo novo exige pressa. A vista curta, impede-o de ver mais longe; e ele passa a circunavegar seu pensamento em torno do seu eu. Interioriza-se, ruminando o passado e sorvendo nas lembranças do que foi, um naco de satisfação. Afinal, como já antevia o filósofo Arthur Schopenhauer  “o perfeito conhecimento começa pela perfeita reminiscência”.

Como ouve mal, a voz do nosso velho vai aos poucos deixando de ser ouvida. E ele pára numa cadeira de balanço, reflexivo, meditabundo, como se estivesse aéreo a tudo, a querer dizer que estancara também sua vontade de viver.
O mundo novo que se renova a cada minuto, vai aos poucos distanciando esse cidadão que, durante décadas, serviu a humanidade, qualquer que fosse o seu jeito de ser. Ferramentas novas que surgem na modernidade, são coisas das quais ele se afasta, mas provavelmente com uma enorme vontade de prescrutá-las.

Ao ver aquela fila de idosos em frente a bateria de caixas eletrônicos, trêmulos, reticentes e envergonhados por não saberem  usar os novos mecanismos da sociedade moderna, fico a pensar: como ser diferente , se ao tempo deles sequer um curso de datilografia puderam fazer e, hoje, até para receber os proventos da Previdência exige-se que eles se adaptem à automação.
Se pudesse fazer chegar a eles um conselho, eu diria como Karen Horney que, nessas horas outonais da vida, “a preocupação deveria levar-nos  a ação e não a depressão”.  Afinal, a vida é plena. A morte é uma piada velha contada nos dias em que até a Ciência já nos sinaliza com a continuidade da existência em uma 
outra dimensão.

Por isso, ao passar pelo corredor e notar que ainda estão suspensos as fotos do ontem, não temerei o destino delas. Afinal, é preciso renovar os ambientes e a própria vida humana faz isso, continuamente.

O dia que ressurge após a noite, nada é mais do que a resposta da Natureza ao constante renovar da vida. Se o é em cada grão semeado, por que não sê-lo nesse projeto magnífico chamado ser humano?

A quem amadureceu pela idade e sente esquecido por aqueles que, um dia, chegarão a esse tempo, a convicta certeza de que, apesar de todas vicissitudes e vexames da terceira idade, reconheçamos: ninguém morre.

A exemplo de alunos que foram para a escola e ao final da aula, a escola terrena vai nos liberar para que retornemos a nossa casa de origem. De lá, certamente, renovaremos as energias do espírito e circunavegaremos em torno de forças outras que vão nos trazer, uma vez seguinte, a uma nova experiência – como já foram outras – até que encontremos as chaves do reino da felicidade que estão depositadas em cada um de nós. E que são acessadas apenas através da existência fortuita do agir em favor do bem e da paz. 

quinta-feira, 14 de junho de 2012

ODE A FP


A dor do esquecer é menor que a do lembrar
Do que fomos e o que não somos 
nesse verso, ver-se já
Poeta de tantos nomes, nem mais sabe quem já foi
Não esperava o infinito 
no finito que há depois
Entrou numa letargia enorme e ficou a delirar
Será que um mar me navega 
ou é preciso navegar?
Quem fui não sei de ontem, quem sou nem mais lembrar
A dor de esquecer o tempo 
é tempo só de calar... 

segunda-feira, 11 de junho de 2012


FÁBULAS

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PARA DOMESTICAR O BICHO-HOMEM  
Texto de Nonato Albuquerque

No reino dos bichos, um passarinho me contou que os animais realizaram uma grande assembléia. Todos foram convocados para esse encontro no centro da grande floresta. Do mosquito ao elefante, da jararaca mais rasteira ao bicho de pena mais veloz dos ares, todos acorreram ao grande chamamento.
Depois que a sábia coruja pôs ordem na ensurdecedora algazarra dos presentes, soube-se o real motivo daquele encontro. Os animais estão demasiadamente preocupados com o futuro do bicho-homem. E ao contrário do que se possa imagnar, não é com a ação humana em relação aos que, insuspeitavelmente, chamamos de irracionais. Os bichos temem que o homem se destrua por si só.
Depois de anos e anos empenhados em caçar os animais em suas reservas naturais e expulsá-los para mais distante de seu 'habitat', parecia que o homem mudara mais os conceitos em relação ao trato de seus irmãos na escala animal. É bem verdade que ainda os agredia, torturava, escravizava e, claro, dizimava-os para continuar sendo. "O homem ainda sobrevive dos nossos mortos", argumentava a dirigente da assembléia.
Nenhum dos presentes, esquecera que o homem ainda os buscavam para o enjaulamento e para a morte, mas nos últimos tempos, eles desviaram o alvo da caça aos bichos, contentando-se em abater o seu próprio semelhante. "O homem, afinal, se tornou o verdadeiro lobo do homem como já prenunciara um membro deles".
Ele já não importunava as manadas de elefantes nas savanas africanas. Perdera o interesse por engaiolar passarinhos só para ter o canto deles. Desistira, através de decretos, de criar os da espécie em extinção e, entre os seres humanos, tornara-se politicamente incorreta a atitude fuzilar animais nas pradarias pelo simples gosto de praticar tiro ao alvo. "Até deixaram de caçar as nossas irmãs baleias para azeitar as suas lanternas", lembrou bem um presente.
- Claro, o homem amadureceu, gente! - piou, ainda mais convencida, a coruja no alto de um carvalho centenário, preservado a partir da conscientização humana de que as árvores fazem parte do ecosistema vital à sobrevivência de todos no planeta.

Foi o bastante para que a assembléia se dividisse. Uns em apoio a essa tese, embora a representante das pulgas, escondidinha atrás de uma orelha animal, desconfiasse da manobra dos ditos racionais. Por sua vez, haviam os que se mostravam contrários,  receiosos de que estaria ocorrendo apenas uma trégua. Poucos, certificavam-se de que a matança dos homens entre si, resultaria de alguma forma em prejuízo para o planeta e, por tabela, ao reino animal.
"É preciso fazer alguma coisa, em benefício... do homem", ladrou o representante dos cães. "Se os homens se matam, como é que a gente vai ter casa, comida e veterinária de graça?", completou.
- Protesto! Numa assembléia como essa não se deve votar em causa própria - repeliu o leopardo, uma eterna vítima da sanha humana.
- Concordo com o companheiro leopardo - baliu timidamente uma gazela, esquecendo as rivalidades animais.
- Desde o início dos tempos, que eles têm se utilizado de nosso trabalho, de nossa pele, de nossa própria carne...", mugiu o representante do gado-vacum. 
- Apoiado! relinchou o jumento, argumentando a questão da escravidão a que muitos foram submetidos pelo homem desde que o Criador de todos os bichos os expulsara do paraiso. "Por causa do homem", sibilou a serpente, esquecendo-se de que ela própria fora personagem nessa estória mal interpretada.
Ao final de muitas discussões, chegou-se a um consenso. Fora colocada em votação, a proposta inusitada de que os bichos deveriam urgentemente começar um trabalho de humanização do bicho-homem. Uma conscientização para que eles pudessem compartilhar realmente das maravilhas da Terra que pouquíssimos humanos conseguem entrevê-las.
Em outras palavras, foi aprovada a proposta para que os bichos domesticassem os homens. Quem sabe, assim, possam eles excluir do seu comportamento, o lado que dizem ser 'animal" quando provocam qualquer ação que contrarie as regras do ser humano.
Moral da história: bicho que é bicho, não tem capricho; ajuda a qualquer bicho.
03/04/2008 01:30 antena Enlace permanente. sin tema No hay comentarios.Comentar.

A PROFECIA DO COMETA

de Nonato Albuquerque 

Ih! Isso de destino, é coisa muito séria...
Não há como remediar para não cumpri-lo.
Quem nele estiver inscrito, se-lo-á por certo
sua vítima, em qualquer curva do caminho...
Isso tudo me falava o bom e velho Isaac,
enquanto me apontava ali no templo
o lugar onde o centenário órgão se alojava,
pedindo-me a gentileza de uma peça...
Mais do que curioso pela visita em sonhos,
Eu é que lhe implorava uma história
Para que eu a desfiasse aos meus leitores
Que, diária ou semanalmente, aqui recolho...
- Do destino ninguém foge! disse-me Isaac,
acentuando bem a expressão "destino",
que a sonoridade de sua voz me tocou fundo...
- Vou contar-lhe a cobrança de um carma.
E narrou-me sobre um homem que, certa feita,
Uma cigana lera em suas mãos cruel fatalidade!
"Tenha cuidado com a passagem do cometa.
Ele poderá ser o causador de sua morte!..."
Coitado do inocente; passou a viver apavorado.
Lia almanaques e informes astronômicos,
à cata de saber onde/quando apareciam cometas,
Prevenindo-se de todas as possíveis formas...
Quando o Halley veio de novo, no século passado,
estendendo sua cauda brilhante, ele, em pânico,
Nem chegou a sair de casa, tomando precaucações.
O cometa passou e... alívio! Nada lhe aconteceu.
Ultimamente, já nem pensava mais no aviso
Da vidente; sorria quando alguém mais próximo
Lhe lembrava a devastadora "profecia do cometa"
E dizia ser coisa que não existe. "Conversa fiada!"
Mas como diz a velha e enxovalhada sabedoria,
"do destino ninguém foge", o previsto se cumpriu.
Estava ele, um dia, atravessando uma estrada,
Quando ouviu um grito: "cuidado, olhe o cometa!"
A última coisa que fez, instintivo, foi olhar o céu...
Sentir um choque, ouvir o baque... cair de bruços!
E ao sair do corpo conseguiu matar a charada:
Era o Rapidão Cometa, que passava com mais uma carga...
Nonato Albuquerque

TEXTOS MEUS


Poesia Nossa de Cada Dia

para os que ficarem depois que eu já tiver ido

O corpo que agora baixa à essa sepultura,
Não sou eu - diria o morto se fosse ouvido.
É apenas o invólucro temporário que a essa altura
Estende-se ao chão, da vida agradecido.

A alma que eu sou e mostra desenvoltura,
Permanece de pé, com todo o seu sentido.
Eu permaneço ativo, vivo essa aventura
Que a vida me propôs e a tenho defendido.

Ah! crença vã dos que pensam dessa maneira
Que ao último suspiro, a vida entregue os pontos
Como gostaria eu de provar a todos quantos

assim mourejam na Terra essa fé sem eira,
Que somos eternos e ambientamos contos
Que em outros planos se renovam em cantos 
13/08/2006 20:06 antena Enlace permanente. sin tema No hay comentarios.Comentar.

Escritos Meus
O anjo decaído

Nonato Albuquerque

Chegou àquele hospital meio chumbado. Não acreditava no que lhe dissera o irmão mais velho. Teria que partir. Viajar com destino ignorado. Era assim que sempre acontecia com os moradores daquela colônia. Chegavam ali, se estabeleciam, recuperando-se da longa jornada pela estrada do tempo e, quando já estavam até criando raízes, fazendo amizades mais fortes, vinha sempre alguém com a notícia de que teriam que embarcar.
Não adiantou nada embirrar, bater o pé, dizer que não ia de jeito nenhum. Contra esse tipo de comportamento, eles tinham ações bem práticas. Chegavam ao ponto de convencer ´neguim´ a aceitar, caso contrário teria que ir à força. Danielo foi um desses casos.
Quando soube que teria que ir, fugiu de casa. Mas não foi tão longe. As barreiras de som colocadas por eles ao longo dos caminhos, rapidinho denunciavam os fugitivos. E acabavam caindo nas armadilhas elétricas montadas por todos os pontos.
O pior é que Danielo descobriu que não adiantava fugir, pois haviam sensores instalados dentro do seu cérebro, denunciando-lhe os mínimos movimentos.
Foi apanhado próximo ao umbral da Costaterra, uma espécie de sítio instalado entre a camada iônica do planeta - a ionosfera - e a selva magnética de sons, onde cada morador era sempre tentado a fugir por ela. Para capturá-lo foi preciso injetar-lhe uma droga de efeitos fortes.
Levado ao hospital pelas equipes técnicas, ele foi colocado num descompressor de energia e, pouco a pouco, ele foi sendo compactado ao nível mais baixo de sua vibração. O que sobrou dele foi colocado dentro de uma proveta, mesmo instante em que da superfície da matéria, agentes iniciavam a experiência "in vitro" para a fertilização de óvulos.
Acordou "uma eternidade depois", preso a vestimentas diferentes e, pelo que soube, passou um bom tempo numa espécie de hibernação para que a operação pudesse ser concluída a contento.
Ao perceber que estava preso outra vez num corpo, gritou, esperneou, mas o eco de sua voz parecia não responder aos impulsos de sua mente. Mãos lhe pegaram jeitosamente e se detiveram alguns minutos a acariciá-lo. Mas o que ele queria era voltar à colônia, ficar com os seus, desistir da viagem à terra nova, sentir-se livre de qualquer amarra, como aquelas vestes que lhe aprisionavam as chances de voltar à luz.
Ouvira alguém dizer que ele nascera. E a voz de uma desconhecida falando baixinho ao seu ouvido: "que bom, que você veio, minha coisa linha!". Queria gritar que ele não era nenhuma coisa, mas sim um anjo do plano da Luz. E que por ter desobedecido as ordens do seu patrão, fora expulso do Paraíso e viera a essa dimensão, pagar sua dívida. Purgar seu pecado. Nascer homem. 


Escritos Meus
0 pássaro de luz
Nonato albuquerque

Noite escura. Breu medonho. Eu na praça da matriz. Silhuetas negras de pessoas conversando. Nenhum som se ouvia. Não se po-dia distinguir ninguém. Vai e vem de gente andando pra lá e pra cá, passeando. Não havia nenhum brilho de luz. De repente, lá em ci-ma na torre da igreja, um pássaro. Um pássaro iluminado. Brilhante que nem uma lâmpada florescente.
A idéia que eu tive é de que ele acabara de pousar em cima do cruzeiro e descansava de um longo vôo. O pássaro de luz era o úni-co contraste naquele mar de escuridão. E, nesse oceano, as pessoas navegavam seus corpos como se buscassem chegar a um porto.
Tentei chamar a atenção dos passantes para a visão fabulosa. A a-ve pousada sobre a torre da igreja e derramando pingos de luz en-quanto sacolejava suas penas. Incrível, as pessoas não me ouviam. E nem me viam, dedo em riste, apontando em direção ao pássaro.
Foi então que me lembrei que podia estar sonhando. E recordei o que, num outro sonho, me ensinara um monge de nome Itzack Al-brecht. ¿Fora da dimensão da matéria, ao invés de falar, pense, diri-gindo sempre o vôo do pensamento a quem você deseja atingir¿.
Fechei os olhos. Mãos postas com os dedos polegares levemente tocando os lábios, vibrei. ¿Gente, vocês não estão vendo aquele pássaro de luz?¿. Incrível. Num átimo de segundo, todos se volta-ram em minha direção, indagando a posição da ave. ¿Um pássaro de luz! Onde?¿.
Apontei a torre da matriz, onde o pássaro continuava pousado. Mas ninguém conseguia vê-lo. ¿Pássaro de luz! Era só o que fal-tava!¿, diziam em tom de ofensa. Achei que estavam a brincar co-migo, mas todos todos foram me dando as costas e retornando aos seus lugares de antes, chamando-me de sonhador, louco, visionário.
Desalentado, eu já ia abandonar o local, quando notei que o pás-saro levantara vôo. E mergulhara em minha direção. Logo, estava diante dos meus olhos. Passou raspando o meu rosto. E enquanto deslizava no seu vôo quase magnético, me surpreendia outra vez.
O pássaro ao passar diante de mim, como se numa cena de ¿slow-motion¿, salpicou gotas de luz em meu rosto. Gotas que escorriam delicadamente iluminando minha face. Gritei para que as pessoas vissem, mas elas não me deram atenção. E então, sem que soubesse dizer como imaginara a idéia que tive, pedí que todos ali pegassem uma vela e algum objeto que os refletisse, um vidro espelhado qualquer, para verificarem o milagre.
E cada vulto negro que ia acendendo uma vela, ia se iluminando, como uma enorme lâmpada florescente, na mesma voltagem da luz do pássaro. De repente, a praça se iluminou e um coro de vozes, partindo não sei de onde, entoou uma Ave Maria que eu nunca ou-vira antes.
- "Vejam como vocês são céticos. O pássaro de luz existe. E ele habita dentro de cada um. Basta despertá-lo- , gritava eu a todo pulmão, enquanto ia acordando magicalizado do meu sonho.



NONATO ALBUQUERQUE
outubro de 1998 
Escritos Meus

A OUTRA FACE DO CRISTO
DA CEIA LARGA DE DA VINCI
Nonato Albuquerque

Nunca tive aptidões para a pintura, mas já fui retratado pelas mãos de um grande mestre. Quem me vê assim maltrapilho, miserável, jogado pelas ruas como um trapo, nem imagina que, um dia, eu já fui modelo de um famoso pintor: Leonardo da Vinci. E meu rosto, acreditem, ficou impresso num de seus trabalhos mais inesquecíveis, a Santa Ceia. Aliás, por duas vezes ele me retratou nessa mesma tela.
Eu morava em Milão, por essa época. Jovem, bem afeiçoado, levava uma existência tranquila. De família abastada, tinha recursos e, por onde eu passava, era alvo de cortesias e olhares das donzelas, chegando a arrancar a ira dos mancebos que me invejavam o porte. Estive prometido a uma das mais bonitas mulheres da cidade. Era, porém, a semelhança física com a figura do Nazareno, o traço mais marcante de minha pessoa.
Certa feita, quando estava em minhas noitadas junto a amigos que o meu dinheiro e minha fama atraíam, achegou-se a mim um pintor florentino de nascimento e de nome já bastante íntimo à escola de arte difundida por seu mecenas, Lorenzo de Médici. Convidou-me para que eu fosse modelo de um novo projeto seu. Uma tela que ia registrar o último encontro de Jesus com os seus discípulos antes da tragédia na cruz. O convite me deixou sa-tisfeito, afinal era o mestre de Nazaré um dos ícones mais respeitados da virtuosa fé católica, a qual eu professava junto com minha família. E, depo-is, eu tiraria partido da minha semelhança com o filho de Deus.
Durante algum tempo da segunda metade do século XV, eu trabalhei pa-ra Da Vinci. Nessas ocasiões, ele conversava muito, indo dos temas mais banais aos assuntos mais profundos. Uma vez, chegou a contar-me algo surpreendente. Havia mais do que o simples interesse em retratar uma pas-sagem bíblica com aquele quadro.
Da Vinci - e quebro agora um pacto de silêncio de muitos séculos - desenvolveu com a "Última Santa Ceia", um precioso ensaio sobre Astrologia, mercê de seus estudos de ocultismo junto a outras ciências que ele tão bem conhecia. O quadro, em verdade, representa uma leitura do cos-mos e os doze signos do Zodíaco e as relações psicossociais de cada indivíduo que nasce sob as mais diversas conjunções. Os onze homens que estão em torno do mestre atendiam, também observou o artista, a um preceito antigo da seita dos nazarenos, cujos rituais ocorriam nos cenáculos, principalmente ao aproximar-se a festa do Pessach.
Depois, quando da Vinci já havia dispensado os meus préstimos, eu me retirei de sua vida e a minha, inexplicavelmente, passou por um redemoi-nho de acontecimentos. Por uma grande paixão não correspondida, eu aca-baria estabelecendo uma mudança radical. A mulher que me fora prometi-da em núpcias, simplesmente me deixou - cansada, segundo ela, de minhas muitas traições - e fugiu com um outro. O peso do mundo desabou sobre minha cabeça. Entrei em parafuso e, literalmente, enlouquecí.
Larguei a casa dos pais, passei a viver nas tavernas, constantemente em-briagado. Perdí as noções do tempo, do respeito e da dignidade, a ponto de chegar a mendigar nas ruas para minha própria sobrevivência. Minha famí-lia fez de tudo na tentativa para eu me recuperar; mas foi em vão.
Uma noite, quando eu dormia junto a outros mendigos no átrio da catedral de Milão, fui acordado por um companheiro. Dizia-me estar ali uma pessoa bem aparentada, à procura de alguém para um trabalho que ele esta-va a realizar. E eu tinha sido a pessoa escolhida.
Quando abrí melhor os olhos e me deparei diante daquele homem de cabelos compridos e barba ainda mais longa, me assustei. Era o pintor famoso que me procurava. Mas ele não reconhecera naquele farrapo humano que eu me transformara, o seu antigo modelo de Cristo. Quando lhe revelei minha identidade, ele ficou perplexo. E ao tomar conhecimento de toda a tragédia, lamentou minha situação de penúria, mas mesmo assim me ofe-receu o emprego até mesmo como forma de me auxiliar na recuperação.
Evidente que eu não mudei, pois a desgraça já havia me tomado a pró-pria alma e nem o meu físico lembrava mais qualquer vestígio da meiga e doce figura do rabi da Galiléia, de outros tempos. Mesmo assim, Leonardo da Vinci precisava de mim para que eu lhe inspirasse com meu rosto preco-cemente envelhecido, a refletir todo a maldade que eu herdara do mundo. Mas, jamais, uma revelação me causaria tanto impacto quanto a da nova proposta do pintor.
Ele, agora, estava à procura de alguém com feições bastante carregadas de sofrimento e dor para figurar no projeto que ele ainda estava a executar. E entre todos os desgraçados da sorte que ele sondara por onde andou, nenhum chamara mais sua atenção do que minha triste e singular pessoa en-tregue à desgraça da bebida.
Aceitei o trabalho e, durante algum tempo, era eu, uma vez seguinte, o modelo através do qual o grande mestre do Renascimento compunha a sua fantástica visão da Ceia Larga, na qual desenvolveu todo o seu talento para revelar a contraditória face da individualidade humana e da capacidade de uma mesma pessoa viver o seu paraíso e o seu inferno numa única existên-cia na Terra.
Depois de ter sido o Cristo nessa obra majestosa, o destino me encami-nhara ao outro extremo. Da Vinci encontrara em mim o modelo completo para retratar o mais miserável de todos os seguidores do Mestre. E foi assim, que eu emprestei novamente o meu rosto para que ele desenhasse o perfil que imaginava ter tido o discípulo Judas Iscariotes, o que fora vítima da sua própria miséria humana. 
Escritos Meus
retrato falado

Um excluído, cidadão de uns 33 anos, é preso, torturado e executado de forma arbitrária. Seu julgamento durou menos de 24 horas, entre a prisão e a morte assistida por centenas de pessoas.
O crime pelo qual foi executado não ficou bem definido. Há suspeitas de que ele vivia à margem da lei. Que pregou uma nova ordem social, na qual as pessoas deveriam viver no Bem, na Esperança e na Caridade.
Ousado, ele chegou a incitar as multidões a abandonarem os vícios da maldade, do ódio e da violência.
Seus algozes o acusaram de andar em bando, com uma gangue que chegara a danificar um templo religioso, expulsando os comerciantes que, segundo ele, assaltavam o
consumidor no peso e no preço.
Preso, depois de várias tentativas frustadas pelas milícias oficiais, esse homem quase foi linchado pela multidão à qual ele assistiu durante três sucessivos anos, ensinando regras de comportamento ético e de uma vida saudável para o corpo e para o espírito.
Foi a ajuda de um integrante de seu grupo - através do expediente da delação - que deu à polícia a chance de localizá-lo. Sua prisão não obedeceu a nenhum critério da lei ou respeito aos direitos humanos.
Sua identidade é bastante conhecida mas há em torno dele um grande mistério. Partidários e até inimigos são unânimes em garantir que ele sempre se portou a favor dos pobres, assassinos, prostitutas e anunciou a Justiça em defesa dos muitos oprimidos.
Esse homem, sem residência fixa, costumava atrair multidões às praças e aos locais por onde ele pregava lições que jamais foram ouvidas da boca de alguém: o dever de amar os inimigos; esquecer pai e mãe para segui-lo; e fazer pelo
outro aquilo que desejaríamos que nos fizessem.
Preso, torturado e executado em via pública num local denominado Morro da Caveira, esse homem mereceu o registro maior de todas as violências.
Seu nome: Jesus.
Seu crime: ter amado a humanidade.



Nonato Albuquerque/escrito em 14/04/95.
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Cada vez mais em muitos lugares do mundo, pessoas de todas as classes buscam descobrir o lado zen da Vida. O verdadeiro sabor dos prazeres da alma.

Desfrutar de coisas simples, mas de prodigiosas virtudes para a expansão do eu interior. Amar a si mesmo, mas sem perder a distância do outro a quem devemos corresponder a lei de ajuda. Viver em benefício de todo próximo. Ser cortês com tudo e com todos. Ter ideais mais próximos da realidade.

Defender o meio ambiente como parte de seu todo. Ouvir mais o vento. Sentir mais a Natureza. Meditar. E saindo de sí, conviver amiúde com pessoas menos amargas e dissociadas de tédio e depressão. Indignar-se com todo erro. Ser exemplo, sem denotar a menor pretensão de sê-lo.

Aqueles que no soberano palco da vida se armam de ferramentas zen, pouco a pouco dissociam-se de seus estresses e descarregam as emoções tendenciosas ao orgulho e ao egoísmo. Expandem mais o seu eu espiritual como forma de iluminação.

A força do Amor tem a competência de acalmar nervos, retemperar os corações de algo suficientemente bom para o equilíbrio da Vida. Prazer, doçura, paciência, compaixão - lenitivos dos quais nem percebemos que dispomos em nosso armazém interior.

Agem bem os que disputam menos o Ter em função do Ser, como forma de responder as inquietações do mundo moderno. Se há vazio e angústia no coração de muitos, é que grande parte dessas pessoas ainda não se apercebeu que o ideal da Vida se nutre de valores que nenhuma gôndola de supermercado tem para oferecer.

Viver zen é, portanto, armar-se de coragem para enfrentar os dias difíceis com a serenidade com que os marujos enfrentam as tormentas e relevar tudo aquilo que, de um modo ou de outro, excede os limites da nossa temperança em função da virtude primordial da vida que é viver em benefício do próprio planeta que habitamos.


Texto: Nonato Albuquerque