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domingo, 28 de junho de 2015

Anjo: menino ou menina?

Nonato Albuquerque

Nicó, filho da dona Dita do Vale, que nasceu no sopé da serra das Flores, revelou à mãe ter um sonho. De ser anjo. Anjo na festa da coroação da padroeira. Padre Zito, ao ouvir a mãe falar aquilo, entupigaitou: ‘Tá querendo que os céus desabem sobre nós, mulher?”, dizia, mandando ela calar a matraca, rezar pelo filho que, provavelmente, andava com ideias de jerico. “Leia Romanos, 1;27-28” falava, imaginando que o garoto andasse jogando água fora da bacia. 

Dona Dita não entregava os pontos. Falava ser coisa de criança, que podia facilitar o sonho do menino. Mas o pároco não dava trela. ‘Anjo na coroação da Virgem! É coisa de menina’. 

Nicó ao saber que não podia ser anjo, desaguou todo o choro reprimido e prometeu nunca mais botar os pés na igreja. Preocupada, a mãe tentou evitar esse ganho pro ateísmo, dizendo que, na reunião de domingo, iria pedir às mães cristãs e às filhas de Maria, um abaixo-assinado em favor dessa causa, a fim de que padre Zito desse o dito por não dito.

Pois as piedosas mães cristãs e as filhas de Maria, ao saberem das intenções de Nicó, correram foi pra igreja, juntaram-se em prece, pedindo a Deus que protegesse esse menino que, de pequeno, já tinha pensamentos - como diríamos? - profanos. “Um menino na coroação de Maria, que desplante!”, dizia dona Emengarda, benzendo-se toda. 

Seu Brito, o pai de Nicó, não pensava assim. Sabia que o filho não tinha eivos de baitolagem. Foi ao padre, pediu compreensão. Que a proibição poderia causar traumas no filho pro resto da vida. O padre nem deu ouvidos. “Anjo é coisa de menina. Anjo menino é pecado. Os céus podem desabar sobre nós”. “Pois, seu vigário, me diga só uma coisinha: prove que um menino não pode ser anjo. Se anjo é coisa de menina, por que nas gravuras sagradas, nunca se viu um anjo fêmea. Só vemos aqueles ‘minino’ com os ‘pintim’ de fora. Nunca vi uma menina”. E foi mais longe: ameaçou cortar as doações do seu armazém para a festa da padroeira. 

Ao ouvir isso, Padre Zito arregalou os olhos, engasgou-se na hora de responder e teve um acesso de tosse. Mãos prostradas, fez aquele velho ar de quem prescruta o céu em busca de resposta e pediu tempo para pensar. 

... 

Ontem, na festa da padroeira, adivinhe quem coroou a imagem de Nossa Senhora? 

Ni-có! Sim, Nicó. 

E os céus nem desabaram sobre a cidade.