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sábado, 5 de março de 2011

O assovio de meu pai - como assoviava bem, meu pai


Quando mais moço, gostava tanto de se arrumar.
Passava Glostora no cabelo umedecido, olhava-se tantas vezes no espelho,
Como para corregir alguma falha e ajeitar o penteado.
Loção pós-barba, num rosto sem marcas.
Punha um linho branco, bem passado,
Sapatos engraxados que chegavam a triscar de brilho
Borrifava uma colônia almiscarada nos pulsos e nas têmporas
E saía assoviando pela rua– como assoviava bem, meu pai.

Da casa onde morávamos, fosse noite ou fosse dia,
Ouvia-se de longe o asssovio de nosso velho, indo ou chegando ele sempre vinha
Tangendo canções de sua infância ou adolescência,
Coisas que o tempo levou, mas que deixam marcas,
Principalmente no peito de quem arde em saudades
E não consegue mais ouvir o assovio de nosso pai nas ruas.

Por quais caminhos andarão seus passos? Por que seu olhar
- quase sempre, de surpresa quando via o nosso – não se faz assim tão presente,
pelo menos na hora do almoço em família ou na janta
Quando do trabalho retornava e de longe se ouvia o assovio
Trinando cantigas como ave que volta ao ninho nos fins de tarde
Era meu pai quem vinha – como assoviava bem, meu pai.

Um dia desses, fosse sonho ou visão mais estranha, eu senti
Perto de mim sua presença; o cheiro era o dele e a voz – inconfundíveis marcas de alguém,
Que nos últimos dias da Terra, pouco dela se ouvira, eram dele.
Era meu pai que do outro lado da dimensão se fazia sentir
E dizer que “morrer não dói”, para depois sumir num assovio
por uma rua cheia de vapores e atapetada de ectoplasmas...

Saudades, hoje, meu pai. Fico a escrevinhar essas coisas
Enquanto o coração pulsa a tua intensa saudade
Querendo riscar do mapa essa ausência negativa que nos incomoda
Para colocar, outra vez, a velha crença de que, apesar dos pesares,
Estamos juntos e estaremos sempre, até que a Vida nova
Nos revela as reais dimensões do que, ainda hoje, se diz ser nada.