Eu nasci na Terra há mais ou menos dois milênios. Tive o privilégio
de ter pais, o que hoje em dia não chega a ser tão comum no Planeta. Na
atualidade, algumas crianças dispõem apenas de mães, embora tivessem
tido pai na função gestora de seus corpos. Muitos pais não estão nem aí
para a responsabilidade com os filhos. Comigo aconteceu diferente.
Antes mesmo de chegar eu já era motivo de preocupação para eles. É
que o pré-natal de minha mãe foi feito por uma pessoa que era um anjo de
criatura. E ele já a certificou, com bastante exatidão, sexo e
antecedentes, além de garantir que eu nasceria sadio como se deve a todo
menino cujos pais se preocupam em recebe-lo depois de unidos pelo
sagrado matrimônio.
Criança, cresci motivada pela virtude da inocência e cercada dos
carinhos de minha família - um outro privilégio que tive, quando é tão
raro encontrar-se uma família bem estruturada nos dias vigentes.
Aprendi as letras e os números habituais a toda criança que vai à
escola. Nas horas de folga, dava-me à brincadeiras junto ao local de
trabalho de meu pai. Em ocasiões assim, em que ia à sua oficina, gostava
de trabalhar com artesanato. Adorava transformar madeiras em pequenas
bigas ou modelar pássaros e figuras que os adultos usavam nas prisões
como elementos de tortura.
Jovem, meus pais decidiram que eu deveria freqüentar colégios de
maior envergadura e me encaminharam a um internato, onde estive por
quase duas décadas em verdadeiro regime de clausura. No mosteiro me eram
ensinadas práticas para a vida do corpo e segredos para as virtudes da
alma. Comecei a ter gosto por esse tipo de aprendizado.
Na escola de iniciados tive acesso às chaves do conhecimento mais
antigo, em que a cultura de povos sábios como os gregos, os egípcios e
os do braço oriental, discerniam sobre o passado, o presente e o futuro
da humanidade. Bebi em fontes secretas dessa sabedoria milenar e todo o
arcabouço de informações me foi colocado à serviço do bem comum.
Não pensem ter sido apenas teórica a fonte de meus conhecimentos, de
maneira alguma. Concluído o tempo de clausura, andanças muitas fiz pelo
mundo, aproveitando a oralidade das culturas e desenvolvendo a minha
psique.
Estive em locais de luxo, hóspede de palácios e mansões majestosas,
mas sempre me repatriando nas comunidades pobres - pois aprendi que,
nelas, reside a soberana força do poder. Ao disporem de tudo, os ricos
acabam por arriscar a perder o todo da lógica do Eu. E quem perde o Eu
não sabe nem avaliar a que tipo de pobreza se insere.
Por volta da terceira década de existência, decidi assumir a missão
de dividir com outros, todo o aprendizado constituído ao longo dos anos.
Era minha intenção primeira, faze-lo instrumento a partir de meu reduto
de crença - a que estiveram ligados os meus pais por princípios
religiosos. Mas a alma do mundo clamava por ouvir uma voz distanciada
dos títulos caprichosos e dos rótulos escravizantes.
Eu sempre me apercebi que Logos não tem dono e, por ser livre,
pertence a todos os que não se pertencem. Que a causa da vida - o Amor -
não tem preço e nem apreço por quem o sela apenas por motivações vãs. O
ambiente da Terra é escola propícia à salutar regeneração das almas
movidas pela soberba e pela cobiça, mas a exemplo de todo doente que se
nega a se fortalecer com o medicamento amargo, há os que se distanciam
dessa verdade.
Reuni em torno de mim alguns virtuosos amigos e me fiz seu
conselheiro, sem que eles imaginassem que estavam operando ali comigo a
bondosa função de serem eles praticamente modelos exemplares para que
minha consciência amadurecida se estabelecesse plena. A todos eu devotei
minha melhor parcela de amor A nenhum neguei o pão do espírito tão
necessário à fome da alma, tampouco deixei de retribuir o salário justo
da orientação correta, que era a forma de prodigalizar o meu trabalho.
Um dia, porém, um deles achou de me expor na roda-viva dos que obtém
poder à custa unicamente do lucro. E multiplicou por cada ano de minha
existência terrena, o valor minha presença física. Vendeu-me como
escravo, sem nem imaginar que com seu gesto, daí a pouco, estaria me
libertando-me da prisão do corpo.
Nos instantes finais de minha vida terrena, fui vítima de todo tipo
de violência - a mesma pérfida violência que, nos dias atuais, atrai
tanto amargor e desídia sobre a Terra. Há os que dizem estar a
humanidade resgatando o peso de suas desatenções do passado, o que
representa uma certa parcela de verdade. Mas o pior é saber que,
endividada de pretéritos delituosos, essa gente por quem dei a minha
própria existência, vive numa eterna busca do ouro esquecendo-se de que
guarda no território de sua alma, as verdadeiras chaves do saber e da
fortuna chamada felicidade. Colocadas a serviço do bem, elas
dimensionariam o nível de qualidade de vida da casa onde vivi há mais ou
menos dois milênios.
texto de Nonato Albuquerque