Por decerto, deves estar lembrado de Nicó, o filho de seu
Brito e da dona Dita do Vale, que nasceu no sopé da serra das Flores e que, aos
seis anos, tinha um sonho: o de se vestir de anjo na festa da padroeira, só
para coroar Nossa Senhora. Do mesmo modo, lembrar-se-á que padre Zito, o pároco
da cidade, chegou a espraguejar com tal ideia, já que coroação de santa, é
tarefa que só anja poderia fazê-lo. Foi preciso mobilizar mundos e fundos – o pai
ameaçou até cortar a ajuda para a quermesse depois do novenário – até que tudo
se arranjasse. Pois bem, Nicó voltou a cometer outra dessas.
Na escola, dona Laurita, a professora de religião, depois de
pregar a necessidade de todos viverem no bem para alcançar o paraíso, pediu aos
alunos que levantassem a mão aqueles que desejavam ir pro céu. Todos o fizeram,
a exceção de Nicó. Ataboalhada com essa reação, ela evitou saber a motivação, com
receio que a explicação do ‘maluvido’ pudesse estimular outros alunos a agirem
tão sacrilegamente. “Abram o livro na página seguinte”. No recreio, o diretor
mandou chamá-la.
Soubera através da pequena Patrícia do seu Policarpo, que
fora arredar o acontecido. “Que história é essa de aluno que não quer ir pro
céu?”, indagou seu Vicente Brilhante, penteando a cabeleeira gumêzada de
glostora. “Foi um deslize do filho da dona Dita. Não quis levantar a mão,
quando indaguei quem gostaria de ir pro céu”. “Mas isso é o cúmulo!” tonitroou
o diretor na pequena sala.
Não é preciso esticar muito a baladeira pra dizer que os pais
de Nicó foram chamados, no dia seguinte, a fim de tomarem conhecimento da
leviandade do filho. Dona Dita, ao saber do que se tratava, debulhou-se em
lágrimas, benzendo-se toda. O pai bufou de raiva, muito embora no fundo achasse
aquilo, ser coisa de criança, que o diretor não devia levar tão a sério.
“Nada disso, seu Brito. Essa é uma escola de família, onde
todos somos católicos, apóstolicos, romanos. Onde as instruções do santo
catecismo devem ser levadas no maior rigor. Quem não estiver de acordo com os nossos
postulados tem que procurar serventia noutra casa”.
Eis que chega à sala, Nicó e dona Laurita. Dona Dita escondeu
o rosto num lenço amarelado. Seu Brito deu-lhe um peteleco. Seu Vicente
admoestou o pai a ser mais severo com o ‘traquina’ quando chegasse em casa. E
dona Laurita puxou a conversa.
“Meu filho, eu pedi essa reunião com o diretor e seus pais, para
que você se explique melhor, porquê não quer ir pro céu, como todos os outros
garotos?
Nicó, cabisbaixo, resmungou algo a que o pai disse:
- Fale alto!
- Pai, a professora perguntou quem queria ir pro céu. Eu num
queria.
- Maldito! – gritou dona Dita, levantando-se da cadeira de palhinha
do gabinete.
- Mas meu filho, isso é uma blasfêmia! – ouviu do pai.
- É não, pai. Dona Laurita perguntou quem queria ir pro céu.
Se ela tivesse me perguntado porquê, lá na sala, eu teria dito que eu tinha que
voltar pra casa depois da aula.