Dia desses eu tive um desprendimento. Essa coisa do 'eu' sair do corpo e volitar pela dimensão dos sonhos. Os místicos chamam de viagem astral e dizem fazê-la com a maior naturalidade. Eu me vi em Iguatu, cidade do interior cearense, onde já morei. Numa mercearia eu ia comprar um quilo de pedras. Curioso né? Mais ainda de saber que a dona da bodega achava a coisa normal e ao pesar as pedrinhas me dizia:
- Tudo pedrinha de
primeira. Da melhor qualidade. Seixos do Jaguaribe que a gente apanha ali no Alto do Jucá.
Pois num era mesmo! Sabe
aquelas pedrinhas que a gente encontra na beira dos rios? Seixos, isso.
Minúsculas, lavadinhas, bem torneadaszinhas, como se a mão de um bom artífice as
tivesse esculpidos com devotado brio.
Pois bem, o sonho me
levara a essa mercearia para comprar pedras... para uma sopa! Sopa de pedras.
Eu também fiz essa cara
de espanto, como você acabou de fazer. Mas fazer o quê? Era sonho. E em sonho
tudo é possível.
Comigo, mais duas
senhoras de iguais aparência, esperavam a hora de serem atendidas. A dona da
mercearia, ao me ver fez uma cara de surpresa e pensou:
- “Meu Deus, olha quem
está aqui? Aquele homem da tv! – pois eu lia o pensamento dela. E nem tinha aqueles balões das histórias de quadrinhos. Era sonho.
Eu pensei de ela se
surpreender com a roupa que eu estava: um calção véi e um par de havaianas de tiras "que não largam cheiro". Nu da
cintura pra cima, naquele pequeno armazém de secos e molhados da rua da feira, estava eu. Era sonho.
No fiteiro sobre o
balcão, me deliciei ver duas batidas, dessas de moagem – as bichinhas pareciam
ter saído do engenho indagorinha.
Quando a mulher voltou
para me entregar as compras, notei que uma das clientes havia saído. E deixara
o celular sobre o balcão.
A senhora da venda pediu-me
que eu verificasse se havia algum registro no número do aparelho que a identificasse. E eu vi, tinha. O nome dela, o endereço onde morava – na praça da matriz de
Senhora Santana - o número do celular e uma foto. Resolvi ir até lá devolver-lhe
o objeto.
Quando ia me retirando
da bodega, ainda deu pra ouvir a vendedora cutucar a cliente e dizer baixinho:
- Num parece aquele
homem da tv?
A cliente me olhou, de
alto a baixo, com um ar de muxoxo danado e disse entre os dentes:
- É não, mulher. Homem
de tv ia andar tão malamanhado assim! – e deu uma rabissaca.
Atravessei a rua em
direção à praça da matriz, enquanto carros passavam, aproveitando o sinal
aberto para eles. E eu passava por entre eles. Isso! Era sonho.
Foi nesse instante que fui acordando, lembrando-me de todos os detalhes, como estou contando agora.
O meu celular tocou.
Saltei da cama. Tirei o aparelho da tomada onde estava carregando. Atendi. Sabe
quem era? A mulher da bodega pra me contar que a dona do celular não recebera o
aparelho, que eu prometera deixar na casa dela.
Dava pra estarrecer! E estarrecei. Ora, eu eu já não estava mais sonhando. E como é que alguém, lá da dimensão da
fantasia, conseguia ligar pra mim que estava desperto? Não era mais sonho.
Como se fosse pouca essa
surpresa, uma outra veio de carona. A voz da mulher, mudou o tom e gritou no
meu ouvido:
- E tem mais: o senhor
esqueceu de pagar as compras.