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quarta-feira, 10 de julho de 2019

ESQUECI DE PAGAR AS COMPRAS

Dia desses eu tive um desprendimento. Essa coisa do 'eu' sair do corpo e volitar pela dimensão dos sonhos. Os místicos chamam de viagem astral e dizem fazê-la com a maior naturalidade. Eu me vi em Iguatu, cidade do interior cearense, onde já morei. Numa mercearia eu ia comprar um quilo de pedras. Curioso né? Mais ainda de saber que a dona da bodega achava a coisa normal e ao pesar as pedrinhas me dizia:


- Tudo pedrinha de primeira. Da melhor qualidade. Seixos do Jaguaribe que a gente apanha ali no Alto do Jucá.

Pois num era mesmo! Sabe aquelas pedrinhas que a gente encontra na beira dos rios? Seixos, isso. Minúsculas, lavadinhas, bem torneadaszinhas, como se a mão de um bom artífice as tivesse esculpidos com devotado brio.
Pois bem, o sonho me levara a essa mercearia para comprar pedras... para uma sopa! Sopa de pedras.

Eu também fiz essa cara de espanto, como você acabou de fazer. Mas fazer o quê? Era sonho. E em sonho tudo é possível.

Comigo, mais duas senhoras de iguais aparência, esperavam a hora de serem atendidas. A dona da mercearia, ao me ver fez uma cara de surpresa e pensou:

- “Meu Deus, olha quem está aqui? Aquele homem da tv! – pois eu lia o pensamento dela. E nem tinha aqueles balões das histórias de quadrinhos. Era sonho.


Eu pensei de ela se surpreender com a roupa que eu estava: um calção véi e um par de havaianas de tiras "que não largam cheiro". Nu da cintura pra cima, naquele pequeno armazém de secos e molhados da rua da feira, estava eu. Era sonho.
No fiteiro sobre o balcão, me deliciei ver duas batidas, dessas de moagem – as bichinhas pareciam ter saído do engenho indagorinha.

Quando a mulher voltou para me entregar as compras, notei que uma das clientes havia saído. E deixara o celular sobre o balcão.

A senhora da venda pediu-me que eu verificasse se havia algum registro no número do aparelho que a identificasse. E eu vi, tinha. O nome dela, o endereço onde morava – na praça da matriz de Senhora Santana - o número do celular e uma foto. Resolvi ir até lá devolver-lhe o objeto.

Quando ia me retirando da bodega, ainda deu pra ouvir a vendedora cutucar a cliente e dizer baixinho:

- Num parece aquele homem da tv?

A cliente me olhou, de alto a baixo, com um ar de muxoxo danado e disse entre os dentes:

- É não, mulher. Homem de tv ia andar tão malamanhado assim! – e deu uma rabissaca.

Atravessei a rua em direção à praça da matriz, enquanto carros passavam, aproveitando o sinal aberto para eles. E eu passava por entre eles. Isso! Era sonho. 

Foi nesse instante que fui acordando, lembrando-me de todos os detalhes, como estou contando agora.


O meu celular tocou. Saltei da cama. Tirei o aparelho da tomada onde estava carregando. Atendi. Sabe quem era? A mulher da bodega pra me contar que a dona do celular não recebera o aparelho, que eu prometera deixar na casa dela.

Dava pra estarrecer! E estarrecei. Ora, eu eu já não estava mais sonhando. E como é que alguém, lá da dimensão da fantasia, conseguia ligar pra mim que estava desperto? Não era mais sonho. 


Como se fosse pouca essa surpresa, uma outra veio de carona. A voz da mulher, mudou o tom e gritou no meu ouvido:


- E tem mais: o senhor esqueceu de pagar as compras.